sábado, 12 de fevereiro de 2011

Francê.

"Foi como uma aparição.

Ela estava sentada, sozinha, no meio do
banco; pelo menos, ele não distinguiu mais
ninguém, cego pela luz que lhe emanava dos
olhos. Quando passava, ela ergueu a cabeça;
Frédéric, involuntariamente, vergou os
ombros; e, sentando-se mais adiante, do
mesmo lado, ficou a olhar para ela.

Nunca vira tal esplendor de pele morena,
sedução igual à daquela cintura, nem dedos
tão finos com os dela, que a luz
atravessava. Olhava com pasmo para a
cestinha de costura, como se fosse uma
coisa extraordinária. Como se chamaria,
onde morava, qual seria a sua vida, o seu
passado? Desejava conhecer os móveis do
quarto dela, todos os vestidos que ela usara,
as pessoas que frequentava; e o próprio
desejo carnal da posse desaparecia perante
uma aspiração mais profunda, numa
curiosidade dolorosa que não tinha limites".

(trecho de Educação Sentimental, de Flaubert)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O coração partido de Sophie se juntou com outros pedaços.

Sophie Calle é uma artista plástica francesa de 50 e tantos anos sobre a qual vc já deve - no mínimo deveria - ter ouvido falar.

Bom, ela já era famosa, mas virou celebridade depois que levou um pé na bunda, ou melhor, um email na Caixa de Entrada.

É, o namorado dela terminou com ela por email. E ela já tinha 50 e tantos anos. E ele por aí também.

Então, num insight artistoplástico, ela fez assim: encaminhou o email a umas cento e poucas mulheres, inclusive à própria mãe, cada qual em sua profissão, com suas opiniões e tudos mais que as mulheres tem, pra saber o que elas achavam sobre.

Uma cacatua, chamada Brenda, também deu sua opinião. Não por email, claro.

E fez uma exposição que bombou mundo afora. Chamava-se "Prenez soin de vous", que era como ele assinava o email. Quer dizer mais ou menos "Cuide-se".

A coisa toda vale não pelo drama em si, mas pelo que resultou dele, um trabalho ótimo. E o nome do cara nunca foi exposto assim abertamente por ela. Eles debateram sobre o fim pela primeira vez publicamente, na Flip de 2009.

Daí que eu tava lendo e encontrei na Bravo! as interpretações que 5 artistas brasileiras - uma fotógrafa, uma cartunista, uma cantora, uma escritora e uma ilustradora - deram ao tal email.

Aqui vai um pedaço da interpretação dada por Beatriz Bracher - a escritora.

O texto vale não pelo drama (repito), mas pq nunca tinha lido uma dor assim tão bem retratada, misturando pedaços do email, com delírios, sensações físicas e perda de membros.

É arrasador, literalmente.


LOGO DEPOIS (de Beatriz Bracher)

Desligo o computador e a mensagem some. Ficam na minha cabeça algumas palavras: "você sabe tão bem quanto eu". Outras: "pensei que isso bastasse", "nunca menti", "me curvar diante de sua vontade".
O computador está desligado, não me lembro de tê-lo desligado. Ligo novamente, aproximo o cursor do ícone de e-mail e, antes que a seta o alcance, levo um choque, as pontas dos meus dedos ficam chamuscadas.
Junto com uma dor no maxilar, o céu, a cadeira, minha roupa, tudo fica preto, branco ou cinza. Tento abrir a boca para desfazer a pressão insuportável nos ouvidos e no peito, e não consigo, o maxilar está travado.
Levanto e caio, sinto gosto de sangue, devo ter ferido o lábio. Minha perna direita sumiu. Vou me apoiando como posso até o banheiro. Enquanto caminho, "o amor que sentimos um pelo outro" avança letra a letra na minha cabeça, e logo depois, de forma violenta: "sentirei uma saudade infinita". Sem uma perna, e, agora, sem o braço esquerdo, não consigo chegar a tempo no banheiro. Um caminho de vômito se forma e não tenho como deixar de pisá-lo com meu pé solitário.
Os ossos parecem querer se esfacelar, de uma hora pra outra fiquei gorda demais para os meus ossos velhos (não eram velhos hoje de manhã). Com medo de cair e me machucar, engatinho até o banheiro e continuo a vomitar na privada. Um filete de bile ainda escorre quando "nunca deixarei de amar você do modo que sempre amei" me nocauteia de vez. Meu estômago se revolve em ondas ainda mais violentas, começa a sair sangue junto com pedaços dos músculos e órgãos internos.
Consigo me levantar, apoio-me na pia e lavo o rosto. Minhas mãos estão tortas, suas articulações entrevadas, a pele fina e rachada. Não quero levantar o rosto.
"Comecei a procurar as outras" levou meus seios. A pele rachada se cobre de manchas de vários tons e texturas.Levanto o rosto e lá está o espelho.
Ela é feia, ela é feia, ela é muito feia. Uma mulher deformada, as orelhas - que ele costumava - enormes, lóbulos - mordiscar - despencam, pálpebras despencam, a penugem da nuca - assim tão macia - some, os cabelos -ele dizia que - caem, os lábios perfeitos viram leporinos. A pele - de pêssego - como um caroço de pêssego. Os olhos - amarelos como os de um tigre - cada vez mais embaçados, brancos, ela finalmente desaparece.
Nada, feia e velha, enrola-se sobre o tapetinho do banheiro.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sobre perder.

"Há algo de estúpido aí, no fato de um livro durar mais do que uma pessoa, o livro que pode ser uma árvore que há anos se balançava sem sair do lugar. É papel. Eu poderia rasgá-lo agora. Eu poderia colocá-lo no lixo e esperar que o mandassem para um centro de reciclagem. De qualquer forma, a chance de ele sobreviver continua sendo maior que o risco de virar outras coisas. Antônia vai virar outras coisas, porque outras coisas viraram Antônia antes, mas o que interessa ter restos de estrelas nos ossos ou ir para o fundo do mar na forma de partículas invisíveis?"

Queda, de Carol Bensimon.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Belém.













A yellow afternoon.
(20/09/2010)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Da vida a dois.

Daí que estava num consultório de ginecologista, meio sonolenta, um livro pra ler; era a segunda, por ordem de chegada. Pelo jeito, não ia demorar.
Então entra um casal de meia idade, seja lá o que isso signifique, e sentam-se ao lado direito dela, depois de uma outra mulher em seus prováveis 40 e alguns anos.
"Dona fulana, por favor venha assinar a guia aqui", a secretária chamou.
A senhora foi, puxou uma cadeira e sentou-se em frente a mesa da secretária, exatamente em frente a porta do consultório. Alguém entrando, não o conseguiria, com essa obstrução.
Então que o marido a chama para corrigir o posicionamento:
"Meu bem, você está sentada bem na porta".
Um olhar impaciente, daqueles que parecem não aguentar mais ver a mesma coisa se repetir há 50 anos, virou para ele, com umas palavras bem secas.
"Sim, eu sei. Se alguém tocar a campainha para entrar eu levanto né?".
Ele olhou para ela, tranquilo. Depois virou a cabeça para a esquerda, na minha direção, mas fixou o olhar na mulher que estava entre nós. Com as sobrancelhas levantadas, nos olhos uma expressão de "é assim mesmo", abriu as mãos, e disse: "Ela é braba...". E sorriu.
E aquilo me afagou o coração.